As contribuições de Proudhon para a economia anarquista

 Debate anarquismo ou marxismo? Realizado entre Iain McKay, em pé, e Martin Thomas, sentado, ao lado de Heather Shaw em 2011, durante o Ideas for freedom



APRESENTAÇÃO

Esta é uma tradução em andamento de um texto de introdução às ideias econômicas de Proudhon.

Ele foi escrito pelo anarquista escocês Ian McKay como capítulo do livro The accumulation of freedom: writings on anarchist economics, editado por Anthony J. Nocella II, Deric Shannon e John Asimakopoulos, obra lançada pela AK Press em 2012. 

Todas as citações são de Property is Theft!: a Pierre-Joseph Proudhon reader, livro editado pelo próprio McKay e também publicado pela AK Press em 2011. 

Ao longo da publicação da tradução neste blog, acrescentarei notas para auxiliar a leitura do texto de McKay, cruzando o acúmulo da sociologia francesa sobre Proudhon (Bouglé, Gurvitch e Ansart) com a análise do autor escocês. 

Este capítulo abrange todas as principais obras econômicas de Proudhon em ordem cronológica, possui valor didático para quem está iniciando na leitura do rebelde francês e revela a influência do seu pensamento econômico no anarquismo histórico.

Raphael Cruz

***

FUNDANDO AS BASES: AS CONTRIBUIÇÕES DE PROUDHON PARA A ECONOMIA ANARQUISTA
 
Iain McKay

Qualquer um que escreva sobre a economia libertária incluiria, sem dúvida, características como propriedade comum da terra, socialização da indústria, autogestão da produção e federações de conselhos de trabalhadores. Tal perspectiva pode ser encontrada nas obras de notáveis anarquistas revolucionários como Mikhail Bakunin, Peter Kropotkin e Rudolf Rocker.

Contudo, é menos conhecido o fato dessas ideias serem encontradas nas obras de Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), a primeira pessoa a se autoproclamar orgulhosamente um anarquista e, consequentemente, o fundador do anarquismo como uma teoria socioeconômica: “a terra é indispensável à nossa existência, – consequentemente uma coisa comum”; “sendo todo capital acumulado propriedade social, ninguém pode ser seu proprietário exclusivo”; “associações de trabalhadores democraticamente organizadas”; “democracia industrial”; “aquela vasta federação de empresas e sociedades entrelaçadas no tecido comum da República democrática e social”; “uma federação agrícola-industrial”.

Como os anarquistas posteriores, Proudhon rejeitou os males gêmeos do capitalismo (“monopólio”) e da nacionalização (“exploração pelo Estado”) em favor de “uma solução baseada na igualdade, – em outras palavras, a organização do trabalho, que envolve a negação da economia política e o fim da propriedade”. Esta percepção, de 1846, está no coração do anarquismo.

Em primeiro lugar, um esclarecimento. O termo “economia anarquista” contém dois conceitos relacionados. Um é a crítica anarquista ao capitalismo, o outro são as sugestões de como uma economia anarquista funcionaria. Ambos estão inter-relacionados. Aquilo a que nos opomos no capitalismo será refletido em nossas visões de uma economia libertária, assim como as nossas esperanças e sonhos de uma sociedade livre informarão a nossa análise do sistema atual. Ambos precisam ser compreendidos, pois, estão interligados.

Esta dupla perspectiva pode ser encontrada nas ideias de Proudhon. Delinearei os dois aspectos da economia anarquista do francês, mostrando como a crítica da propriedade alimentou a sua visão positiva do socialismo libertário e vice-versa. Ao fazer isso, também lançarei luz sobre um importante pensador anarquista que é mais conhecido por algumas citações do que por suas substanciais contribuições tanto para a crítica do capitalismo quanto para a nossa perspectiva anarquista.

O QUE É A PROPRIEDADE?

A fama e a influência de Proudhon foram garantidas em 1840, quando ele escreveu O que é propriedade? e respondeu “é o roubo”. Este livro contém uma crítica contundente à propriedade privada, bem como esboços de uma nova sociedade livre: a anarquia. Rejeitando tanto o capitalismo quanto o comunismo (autoritário), Proudhon reivindicou uma “síntese de comunismo e propriedade”, uma “união” que “nos dará a verdadeira forma de associação humana”. “Esta terceira forma de sociedade”, declarou ele, “chamaremos de liberdade”.

A crítica de Proudhon baseava-se em dois conceitos-chave. Em primeiro lugar, a propriedade permitia ao proprietário explorar o seu usuário (“propriedade é roubo”). Em segundo lugar, essa propriedade criou relações sociais opressivas entre os dois (“propriedade é despotismo”). Estes conceitos estão inter-relacionados, pois são as relações de opressão que a propriedade cria que permitem que a exploração aconteça, e a apropriação por uma minoria do nosso bem comum dá ao resto pouca alternativa a não ser concordar com tal dominação e deixar o proprietário se apropriar dos frutos do seu trabalho.

A genialidade de Proudhon e o poder da sua crítica foi que ele reuniu todas as defesas e desculpas da propriedade e mostrou que, logicamente, elas poderiam ser usadas para atacar essa instituição.

Para alegar que a propriedade era um direito natural, ele explicou que a essência de tais direitos era sua universalidade e que a propriedade privada assegurava que esse direito não pudesse ser estendido a todos. Para aqueles que argumentavam que a propriedade era necessária para garantir a liberdade, Proudhon corretamente objetava que “se a liberdade do homem é sagrada, é igualmente sagrada para todos os indivíduos; que, se necessita de bens para a sua ação objetiva, isto é, para sua vida, a apropriação material é igualmente necessária para todos”. Para alegar que o trabalho criou a propriedade, observou que a maioria das pessoas não tem propriedade para trabalhar e o produto desse trabalho era propriedade de capitalistas e proprietários de terras, e não dos trabalhadores que o criaram. Quanto à ocupação, argumentou que a maioria dos proprietários não ocupa toda a propriedade que possui, enquanto aqueles que a usam e ocupam não a possuem.

Proudhon mostrou que os defensores da propriedade tinham de escolher entre o interesse próprio e o princípio, entre a hipocrisia e a lógica. Se é correto que a apropriação inicial de recursos seja feita (por qualquer razão preferida), então, por essa mesma razão, é correto que outros na mesma geração e nas gerações subsequentes abolissem a propriedade privada em favor de um sistema que respeite a liberdade de todos e não de alguns. (“Se o direito à vida é igual, o direito ao trabalho é igual, e também o direito de ocupação.”) Isso significa que “aqueles que não possuem hoje são proprietários pela mesma razão daqueles que possuem; mas, em vez de inferir disso que a propriedade deve ser compartilhada por todos, exijo, em nome da segurança geral, a sua total abolição”. 

A propriedade permite a criação de relações sociais autoritárias e exploratórias. Para Proudho era comprovadamente falsa a noção de que os trabalhadores são livres quando o capitalismo, na verdade, os força a procurar emprego. Ele estava bem ciente de que em tais circunstâncias a propriedade “viola a igualdade pelos direitos de exclusão e ampliação, e a liberdade pelo despotismo”. Ela tem “identidade perfeita com roubo” e o trabalhador “vendeu e entregou a sua liberdade” ao proprietário. Anarquia era “a ausência de um mestre, de um soberano”, enquanto “proprietário” era sinônimo de “soberano”, porque ele “impõe a sua vontade como lei e não sofre nem oposição, nem controle”. Assim, “propriedade é despotismo”, pois “cada proprietário é soberano senhor na esfera da sua propriedade” e, portanto, liberdade e propriedade eram incompatíveis.

Daí a necessidade premente, se realmente buscamos a liberdade para todos, de abolir a propriedade e as relações sociais opressivas que ela gera. Com trabalhadores assalariados e arrendatários, a propriedade tornou-se “o direito de usar [algo] pelo trabalho do seu vizinho” e assim resultou na “exploração do homem pelo homem” para “viver como proprietário, ou consumir sem produzir, é necessário, então, viver do trabalho de outro”. Como Marx, mas muito antes dele, Proudhon argumentou que os trabalhadores produziam mais valor do que recebiam em salários:

Quem trabalha torna-se proprietário... E quando digo proprietário, não me refiro simplesmente (como fazem nossos economistas hipócritas) proprietário da sua mesada, da sua remuneração, do seu salário, — quero dizer proprietário do valor que cria, e pelo qual só o patrão lucra... O trabalhador retém, mesmo após ter recebido o seu salário, um direito natural sobre a coisa que produziu.

O capitalista também se apropria injustamente do valor adicional (denominado “força coletiva”) produzido pela cooperação:

Uma força de mil homens trabalhando vinte dias recebeu o mesmo salário que alguém receberia trabalhando cinquenta e cinco anos; mas esta força de mil fez em vinte dias o que um único homem não poderia ter realizado, embora tivesse trabalhado por um milhão de séculos. A troca é justa? Mais uma vez, não; quando você pagou todas as forças individuais, a força coletiva ainda está por pagar... da qual você desfruta injustamente.

Propriedade significava que “outro deve realizar o trabalho enquanto [o proprietário] recebe o produto”. Assim, o “trabalhador livre produz dez; para mim, pensa o proprietário, ele produzirá doze” e, portanto, para “satisfazer a propriedade, o trabalhador deve primeiro produzir além das suas necessidades”. Não é de admirar que “propriedade é roubo!”

A sua obra clássica não se limitou à crítica e deu alguns esboços de uma economia anarquista. A propriedade seria socializada como “a terra não pode ser apropriada” e “todo o capital, seja material ou mental, sendo o resultado do trabalho coletivo, é, em consequência, propriedade coletiva”. As pessoas “são proprietárias de seus produtos – ninguém é proprietário dos meios de produção”. Assim, “o direito ao produto é exclusivo” enquanto “o direito aos meios é comum”. O controle dos trabalhadores prevaleceria, pois, os gerentes “devem ser escolhidos entre os trabalhadores pelos próprios trabalhadores e devem preencher as condições de elegibilidade. É o mesmo com todas as funções públicas, sejam de administração ou de instrução.” Portanto, seja na terra ou na indústria, o objetivo de Proudhon era criar uma sociedade de “possuidores sem mestres”.

No ano seguinte, Proudhon escreveu um segundo livro de memórias (Carta a M. Blanqui), no qual esclareceu certas questões levantadas no primeiro livro de memórias e respondeu a seus críticos. Ele novamente defendeu a propriedade socializada e os direitos de uso para “a riqueza, produzida pela atividade de todos, é pelo próprio fato da sua criação coletiva que a riqueza, cujo uso, como o da terra, pode ser dividido, mas que como propriedade permanece indivisa.” Proudhon pretendia “reduzir” a propriedade “ao direito de posse” e “organizar a indústria, associar trabalhadores” para “aplicar em larga escala o princípio da produção coletiva”. Ele chamou essa “não apropriação dos instrumentos de produção” de “destruição da propriedade”. Assim, os direitos de uso substituem os direitos de propriedade pela propriedade comum, garantindo que indivíduos e grupos controlem o produto do seu trabalho, o próprio trabalho e os meios de produção utilizados. Resumindo: “Prego a emancipação aos proletários; associação aos trabalhadores”.

SISTEMA DAS CONTRADIÇÕES ECONÔMICAS

A próxima grande obra de Proudhon foi o Sistema das contradições econômicas, lançada em dois volumes no ano de 1846. Foi nesse trabalho que ele usou pela primeira vez o termo “mutualismo” para descrever o seu socialismo libertário. Este termo não foi inventado por ele, mas por trabalhadores em Lyon durante a década de 1830. Proudhon esteve lá em 1843 e foi profundamente influenciado pelas ideias e práticas desses trabalhadores.

O livro é mais conhecido pela resposta de Marx em 1847, A miséria da filosofia. Embora Marx apresente alguns pontos válidos contra Proudhon, estes perdem seu valor devido as distorções, citações seletivas, adulterações do texto original e outras práticas intelectualmente desonestas. Basta dizer que ler a obra de Proudhon mostra um pensador radicalmente diferente daquele que os leitores de Marx esperariam.

Deve-se enfatizar, dados os mitos gerados por Marx, que Proudhon apoiou a indústria em grande escala. De fato, ele rejeitou explicitamente um retorno à produção em pequena escala como “retrógrado” e “impossível”. Ele também apoiou associações de trabalhadores, o que não é surpresa quando entende-se que Proudhon localiza a exploração no capitalismo firmemente na produção como consequência do trabalho assalariado. Como esta análise informa a sua visão de uma economia anarquista, vale a pena discuti-la – particularmente porque, ironicamente, Proudhon foi o primeiro a expor muitos dos conceitos-chave da economia marxista.

Primeiro, Proudhon enfatizou que o trabalho não tinha valor, mas o que ele cria tem e, portanto, produz valor apenas como trabalho ativo envolvido no processo de produção:

Diz-se que o trabalho tem valor, não como mercadoria em si, mas em vista dos valores que se supõem potencialmente contidos nele. O valor do trabalho é uma expressão figurativa, uma antecipação do efeito da causa... torna-se realidade através do seu produto.

Em segundo lugar, consequentemente, quando os trabalhadores são contratados, não há garantia de que o valor dos bens produzidos seja igual ao seu salário. Sob o capitalismo, os salários não podem ser iguais ao produto, pois o proprietário obtém lucro controlando tanto o produto quanto o trabalho:

Você sabe o que é ser um trabalhador assalariado? É trabalhar sob as ordens de um mestre, atento a seus preconceitos ainda mais do que a suas ordens... É não ter opinião própria... não conhecer nenhum estímulo exceto o pão de cada dia e o medo de perder o emprego.

O assalariado é um homem a quem o proprietário que o aluga diz: O que você tem que fazer não é da sua conta; você não o controla.

Em terceiro lugar, essa relação hierárquica permitiu que a exploração ocorresse: 

O trabalhador (...) cria, além da sua subsistência, um capital sempre maior. Sob o regime de propriedade, o excedente de trabalho, essencialmente coletivo, passa inteiramente, como a renda, para o proprietário: ora, entre essa apropriação disfarçada e a usurpação fraudulenta de um bem comum, onde está a diferença?

A consequência dessa usurpação é que o trabalhador, cuja parte do produto coletivo é constantemente confiscada pelo empresário, está sempre em desvantagem, enquanto o capitalista está sempre no lucro (...). A economia política, que sustenta e defende esse regime, é a teoria de roubo.

Em suma, a empresa capitalista “com a sua organização hierárquica” significa que os trabalhadores “abriram mão de sua liberdade” e “venderam as suas armas” a um patrão que os controla, se apropria do produto do seu trabalho e, consequentemente, da “força coletiva” e do “excedente de trabalho” que eles criam. Isso produziu as contradições econômicas que Proudhon analisou. Assim, por exemplo, a introdução da maquinaria no capitalismo “prometia-nos um aumento da riqueza”, mas também produzia “um aumento da pobreza”, bem como “nos trazia a escravidão” e aprofundava “o abismo que separa a classe que comanda e usufrui da classe que obedece e sofre”. Tais contradições só poderiam ser resolvidas abolindo o sistema que as criou.

A sua análise de como a exploração ocorria na produção e a natureza opressiva do local de trabalho capitalista alimenta diretamente os argumentos de Proudhon em favor da associação dos trabalhadores e da socialização da propriedade (“revelar o sistema de contradições econômicas é lançar as bases da associação universal”). Como “todo trabalho deve deixar um excedente, todos os salários [devem] ser iguais ao produto” e “[por] virtude do princípio da força coletiva, os trabalhadores são iguais e associados dos seus líderes”. A associação do futuro estaria baseada no livre acesso (“deveria permitir o acesso a todos”) e na autogestão (“gozar desde já dos direitos e prerrogativas dos associados e até dos gerentes”). Daí “é necessário destruir ou modificar a predominância do capital sobre o trabalho, mudar as relações entre empregador e trabalhador, resolver, em uma palavra, a antinomia da divisão e da maquinaria; é preciso ORGANIZAR O TRABALHO”. Aqui vemos como a crítica alimenta diretamente a visão de uma economia livre.

Esse argumento de que as sociedades mudam e se desenvolvem estava enraizado na consciência de Proudhon. Ele denunciou “o vício radical da economia política” de “afirmar como estado definitivo uma condição transitória, a saber, a divisão da sociedade em patrícios e proletários”. O “período pelo qual agora estamos passando” foi “distinguido por uma característica especial: TRABALHO ASSALARIADO”. Assim como o capitalismo havia substituído o feudalismo, o capitalismo e o seu sistema de direitos de propriedade seriam substituídos por uma economia baseada no trabalho associado e na propriedade socializada: o mutualismo.

Esses dois volumes foram principalmente um trabalho de crítica, com poucas visões propositivas. Mostra uma compreensão aguda da necessidade de transformar as relações de produção, de buscar uma solução para a produção, a exploração e a opressão do capitalismo. O foco da obra era destrutivo e não construtivo – ele afirmou explicitamente que “reservaria” a discussão sobre a organização do trabalho “para o momento em que, terminada a teoria das contradições econômicas, encontraremos na sua equação geral o programa da associação, que então publicaremos em contraste com a prática e as concepções dos nossos predecessores”. A revolução de fevereiro de 1848 o forçou a fazer exatamente isso.

CONTINUA...

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