Loïc Wacquant e os dois usos da teoria social

Loïc Wacquant (1960 -)


Ao avaliar o legado de Pierre Bourdieu para as ciências sociais, Loïc Wacquant (2002) identificou dois usos da teoria social: o escolástico e o gerativo.

O modo escolástico é aquele em que a produção de categorias teóricas tem um fim em si mesmo, “para exposição ritual e adoração” (Wacquant, 2002, p. 103). O arquétipo desse uso da teoria seria, na opinião do autor, o sociólogo Talcott Parsons.

Já no modo gerativo, desenvolve-se teoria para usá-la em pesquisa empírica e “para provar e expandir sua capacidade heurística em um confronto sistemático com a realidade sócio-histórica” (Wacquant, 2002, p. 103). Exemplo desse uso é o próprio autor em seu livro Corpo e alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe (2002). 

Como destaca Wacquant (2002, p. 103), neste uso, a teoria é menos visível e a extraímos por meio da leitura atenta das “observações que ela conduz (e nas quais ela às vezes se esconde)”. Acredito que o autor se refere a como a teoria, no modo gerativo, tende a estar localizada abaixo de uma camada de descrição empírica.

Contudo, existe teoria, ao menos em ciências sociais, que esteja apenas autorreferenciada no universo teórico, sem referência alguma ao mundo social? 

Essas reflexões de Wacquant me remeteram a uma passagem de Habu: the innovation of meaning in Daribi religion, etnografia escrita pelo antropólogo estadunidense Roy Wagner.

Cito ao autor: “every ethnography has its ‘theory’, no matter how diffuse, insipid, or matter-of-fact this may be, just as every theory has its ethnography” (WAGER, 1972, p. 13). 

O antropólogo estar a dizer que a relação entre empiria e teoria é tão visceral que mesmo a etnografia mais radicalmente empirista está assentada em teoria, da mesma maneira que a teoria mais abstrata baseia-se, em alguma medida, na empiria.  

Penso que até Parsons, este arquetípico do uso escolástico, segundo Wacquant, teve uma base empírica para o seu “sistema de ação social” e suas quatro funções primárias: manutenção de padrões, integração, realização de metas e adaptação. 

Lembro que a conclusão do monumental A estrutura da ação social (2010), está dividida em duas partes, respectivamente nomeadas de Conclusões verificadas empiricamente e Implicações metodológicas experimentais. 

Assumindo-se o argumento wacquantiano sobre os dois usos da teoria social, pode-se dizer que no modo escolástico é a empiria que está localizada abaixo de uma camada de elaboração teórica. Isto é, o inverso da relação entre teoria e empiria identificada no modo gerativo. 

Se considerar a maneira que o próprio Parsons organizou os capítulos de seu livro, é literalmente assim que ocorreu no caso de A estrutura da ação social!

Raphael Cruz


Referências 

PARSONS, Talcott. A estrutura da ação social. Um estudo de teoria social com especial referência a um grupo de autores recentes, v. 2. Petrópolis: Vozes, 2010. 

WACQUANT, Loïc. Corpo e Alma ­ Notas Etnográficas de um Aprendiz de Boxe. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

WACQUANT, Löic. O legado sociológico de Pierre Bourdieu: duas dimensões e uma nota pessoal. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 19, p. 95-110, nov. 2002.

WAGNER, Roy. Habu: the innovation of meaning in Daribi religion. Chicago: The University of Chicago Press, 1972.


Observação: texto revisado em 2 de dezembro de 2023.

Comentários

Postagens mais visitadas