Elegia para Canudos nos 125 anos da guerra

Detalhe da fotografia de Flavio de Barros dos sobreviventes da Guerra de Canudos (1896-1897)


Determinados fatos da história do Brasil dão razão à teoria anarquista do Estado.

Mikhail Bakunin (1977, p. 240) escreveu em Os ursos de Berna e o urso de São Petersburgo, que "a lei suprema do Estado é o aumento de sua potência, em detrimento da liberdade no interior e da justiça no exterior". 

Adaptando ao contexto nacional, pode-se dizer que ocorreu o aumento da potência do Estado, em detrimento da liberdade no interior e o aumento da sua submissão no exterior.

O Estado no Brasil possui uma interessante contradição. Ao mesmo tempo em que, ao nível geopolítico, é subordinado aos países imperialistas, é, ao nível doméstico, tirano com a sua própria população (Fernandes, 2022) [1]. 

Foi fenômeno recorrente na consolidação do Estado no país, a eliminação sistemática de formas de autogoverno popular tais como Palmares, Canudos, Contestado, Caldeirão, Trombas e Formoso.

No período republicano, enquanto o Estado era dependente economicamente e submisso politicamente à imperialista Grã-Bretanha, massacrava os sertanejos devotos do Conselheiro no sertão baiano (Singer, 1998).

No período da ditadura empresarial-militar (Dreifuss, 1981), ao mesmo tempo em que o Estado era um posto avançado do imperialismo estadunidense na América Latina, caçava, prendia, torturava e assassinava os camponeses rebeldes de Trombas e Formoso (Azevedo, 2014).

Assim, o estatismo no Brasil, enquanto processo de formação, transformação e reprodução da concentração de poder via Estado, funcionou no plano interno em detrimento da liberdade e da justiça dos povos sob o seu controle, enquanto no plano externo se subordinou aos interesses e ao controle imperialista.

Sua população civil foi tratada como inimiga. E as experiências populares de autogoverno foram compreendidas e combatidas como ameaças ao monopólio do poder do Estado sobre a sociedade civil. 

O massacre de Canudos e sua recriação sistemática em favelas, florestas e campos contemporâneos, revela que no Brasil, o massacre não é a exceção, nem fato do passado, mas a regra geral do Estado, parafraseando Walter Benjamin (1995). 

Pensando com Bakunin (2003), pode-se sugerir que o massacre de populações civis é mecanismo estruturante do estatismo no Brasil, capaz de revelar um continuum entre colonialidade e modernidade, a atravessar os períodos colonial, imperial e republicano da história do país (Mendonça, 2017).

Flavio de Barros (1897), Sobreviventes da Guerra de Canudos

O massacre da população civil sempre esteve a disposição do Estado no Brasil, como meio para "governar a sociedade de cima para baixo", sendo legitimado "em nome de um pretenso direito teológico ou metafísico, divino ou científico" (Bakunin, 2003). 

A teologia cristã foi instrumentalizada pelo poder colonial para justificar a subordinação física e moral dos povos originários e afrodescendentes à coroa portuguesa e ao catolicismo. O cientificismo foi instrumentalizado pelo poder republicano para estigmatizar o povo de Belo Monte como horda fanática de religiosos pró-restauração do império, justificando, assim, o massacre do povo de Canudos.

Assim, diferentes e contraditórios sistemas cognitivos (Gurvitch, 1969) como a teologia cristã ou a ciência evolucionista foram acionadas ao longo do tempo para justificar situacionalmente a ação aniquiladora de povos pelo Estado. 

Isso revela não apenas uma variedade nas maneiras de legitimar massacres, seja a partir de um direito teológico ou científico, como diria Bakunin (2003), mas escancara também a continuidade dos massacres apesar da variedade de justificativas.

Os massacres mostram a derrota militar dos autogovernos populares. Contudo, quando apropriados pela memória coletiva, como é o caso de Canudos, revelam uma vitória ideológica em relação a tentativa do Estado de enterrar os fatos como enterrou os mortos, com discursos oficiosos ou pelo esquecimento seletivo do que não convém aos seus mitos de fundação e de expansão estatal. 

Em seu Instagram, Paullo Régis, um descendente de sobreviventes ao massacre de Canudos, escreveu que quase ninguém em 2022 é capaz de citar o nome dos algozes do povo de Belo Monte. Porém, muitos podem reconhecer, 250 anos depois do fim da guerra, o nome do Conselheiro e de seu arraial fincado no sertão da Bahia. 

Raphael Cruz


Notas

[1] Por isso que o nacionalismo militar aqui nunca foi, de fato, nacionalista, no sentido de preservar interesses econômicos e políticos da burguesia interna, como o fora em outros lugares da América Latina, mas uma espécie de corporativismo da caserna sempre preocupado com suas próprias demandas, e disposto a bater continência ao império da vez.

Referências

AZEVEDO, Leon Martins Carriconde. A revolta camponesa de Trombas e Formoso e a contribuição da teoria anarquista. Em Debate, n. 11, p. 68-89, 2014.

BAKUNIN, Mikhail. Estatismo e anarquia. São Paulo: Imaginário, 2003.

BAKUNIN, Mikhail. Os osos de Berna y el oso de San Petersburgo [1870]. In: BAKUNIN Mikhail. Obras Completas. Madrid: La Piqueta, 1977.

BENJAMIN,  Walter. Sobre  o  conceito  de história. In: BENJAMIN,  Walter. Magia  e técnica, arte e política. São Paulo: Brasiliense, 2005.

DREIFUSS, René Armand. 1964: A conquista do Estado: ação política, poder e golpe de classe. Petrópolis: Editora Vozes, 1981.

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Contracorrente, 2020.

GURVITCH, Georges. Os quadros sociais do conhecimento. Rio de Janeiro: Moraes Editores, 1969.

MENDONÇA, Bartolomeu Rodrigues. Continuum colonial: colonialidade (=modernidade), empreendimentos capitalistas, deslocamentos compulsórios e escravos da República no Estado do Maranhão, Brasil. 2017. 319 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) - Universidade Federal do Maranhão, São Luís, 2017.

SINGER, Paul. De dependência em dependência: consentida, tolerada e desejada. Estudos Avançados. 1998, v. 12, n. 33, pp. 119-130.

Observação: texto revisado em 3 de dezembro de 2022.

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