Alfred Schutz e os constructos de primeiro e segundo grau
Alfred Schutz (1899-1959) |
Na história das ciências sociais, a utilização de categorias do "mundo da vida" para a fabricação de conceito teórico foi problematizada, ao menos, de duas maneiras:
a) na sociologia, por Alfred Schutz, através da relação entre construtos de primeiro e segundo graus;
b) na antropologia, por exemplo, nas "teorias etnográficas" de Marcel Mauss e Malinovski, por meio de categorias como mana, hau, potlach e kula (Da Col; Graeber, 2011).
Ambas as maneiras colocam problemas epistemológicos e metodológicos sobre a construção do conhecimento nas ciências sociais.
Nesta postagem, vou me deter na perspectiva de Schutz. E como ela foi importante para minha pesquisa de doutorado, no que tange ao tratamento de dados produzidos durante o trabalho de campo (Maurício, 2019).
Construtos de primeiro e segundo graus
Para Alfred Schutz, a primeira tarefa metodológica das ciências sociais é "a exploração dos princípios gerais segundo os quais o homem organiza suas experiências na vida diária, e especialmente as do mundo social (...)." (2014, p. 53).
O autor interessava-se em desvendar como o "pensamento do senso comum toma conhecimento do mundo social e cultural" (Ibid).
Schutz entendia a compreensão (Versthen) como uma "técnica para lidar com as coisas humanas." (Ibid). Nesse sentido, foi um explorador do mundo da vida (Lebenswelt).
Sua teoria social foi devedora de certa tradição alemã, aquela das problematizações fenomenológicas do filósofo Edmund Husserl sobre a intersubjetividade como condição da vida social, e as elaborações da sociologia compreensiva de Max Weber sobre o sentido subjetivamente atribuído à ação.
Para a investigação do mundo da vida, Schutz distinguiu entre construtos de primeiro grau e de segundo grau, algo coerente com os pressupostos da fenomenologia e da sociologia compreensiva.
Os construtos de primeiro grau são definidos como os construtos do senso comum, os elementos subjetivos da ação do ator desde seu ponto de vista.
Os de segundo são os construtos científicos elaborados pela ciência para explicar a realidade social.
Para o autor, "se as ciências sociais visam, de fato, explicar a realidade social, então os construtos científicos de segundo grau têm também de incluir uma referência ao significado subjetivo que uma ação tem para o ator" (2014, p. 54).
Ele nomeará essa sensibilidade metodológica de "postulado da interpretação subjetiva" (Ibid).
A consequência da aplicação desse postulado é "(...) que os conceitos formados pelo cientista social são construtos dos construtos formados no pensamento do senso comum pelos atores no cenário social (...)" (2014, p. 55).
Para a perspectiva fenomenológica de Schutz, o mundo da vida é a fonte da teoria sociológica.
Levando Schutz para o Litoral do Piauí
Durante minha pesquisa de doutorado sobre a construção social e histórica da territorialidade dos extrativistas do litoral piauiense, realizei observação direta e entrevista com eles (Maurício, 2019).
Nessa ocasião, tomei contato com as palavras terra e terreno, que naquele mundo social significavam classificações do espaço.
Terra referia-se aquilo que era de uso comum como as matas, praias, capoeiras e mangues. O terreno designava os espaços de uso familiar como a casa, o sítio, o quintal, o jardim.
Utilizei essas categorias de classificação espacial para construir a noção de "sistema terra-terreno" como arranjo ético onde as relações de parentesco ordenavam o terreno como espaço de parentes, e as relações comunitárias ordenavam à terra como espaço de apropriação comum.
Essa noção teórica (sistema terra-terreno) construída a partir de noções nativas dos extrativistas (terra e terreno) estruturou minha descrição da formação, funcionamento e mudança da territorialidade daquele grupo social.
Essa abordagem é comum tanto a sociologia fenomenológica quanto a tradição etnográfica da antropologia.
Ela possibilitou-me teorizar a partir de dados produzidos no trabalho de campo entre os pescadores e catadores de caju do litoral piauiense. E, assim, entregar, na forma de tese, uma reflexão enraizada no munda da vida de meus interlocutores de pesquisa.
Raphael Cruz
Referências
GRAEBER, David; DA COL, Giovanni. The return of ethnographic theory. H AU: Journal of Ethnographic Theory, v. 1, n. 1, 2011.
MAURÍCIO, Francisco Raphael Cruz. Os Filhos do Lugar: crônicas da territorialidade pedral. 2019. 307f. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Ceará, Centro de Humanidades, Programa de Pós-graduação em Sociologia, Fortaleza, 2019.
SCHUTZ, Alfred. Sociologia interpretativa. In: CASTRO, Celso. Textos básicos de sociologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
Obs: texto revisado em 12 de dezembro de 2022.
Comentários
Postar um comentário