Dialética das escalas macro e microssociológicas em Gurvitch

Georges Gurvitch (1894-1965)


No volume I de La vocation actuelle de la sociologie (1957 [1973]), Georges Gurvitch reflete sobre as escalas micro e macrossociológicas.

Sua perspectiva é particularmente interessante para mim.

Isso porque em meus anos de formação acadêmica, alguns professores orientavam alunos a criar predileção por uma ou outra dessas escalas na atividade de pesquisa.

Relativizei essa antinomia após tomar contato com a metodologia do estudo de caso, tal qual formulada e praticada pela escola antropológica de Manchester (Jaap van Velsen, Max Gluckman, Clyde Mitchel) e por um de seus discípulos, Michael Burawoy. 

A metodologia do estudo de caso parecia romper a antinomia entre as escalas micro e macrossociológicas porque através da observação de situações sociais (escala micro) era produzido conhecimento sobre processos sociais relativos ao capitalismo e ao colonialismo (escala macro).

Em Gurvitch, essas escalas também não são antinômicas, mas relacionáveis, uma ofertando sentido a outra.

Contudo, diferente dos antropólogos de Manchester, Gurvitch chegou a uma perspectiva de integração das escalas através de sua sociologia teórica, e não da pesquisa etnográfica.

Ele elaborou uma tipologia sociológica ao longo de sua obra. 

Ela é formada, basicamente, por 1) formas de sociabilidade entre o eu, o outro e o nós; 2) agrupamentos particulares como a família, que são um macrocosmo de formas de sociabilidade; e 3) sociedades globais, que são um macrocosmo de agrupamentos particulares.

É no interior dessa tipologia que ele reflete sobre as escalas micro e macrossociológicas.

"Não se poderia estudar com precisão qualquer agrupamento social concreto sem, de um lado, integrá-lo numa sociedade global particular, e, de outro lado, sem descrever a singular constelação do microcosmo de ligações sociais que o caracteriza" (Gurvitch, 1973, p. 13). 

Penso que o autor seria crítico às pesquisas de corte etnometodológico ou interacionista simbólico porque se concentram apenas nas interações face a face, o primeiro nível da tipologia gurvitchiana.

Bourdieu (2004), de certa forma, ecoa essa crítica. Ele afirma que a compreensão da interação não deve ser buscada na própria interação (formas de sociabilidade, no modelo tipológico de Gurvitch), mas nas condições sociais de produção da interação. 

Por outro lado, os estudos exclusivamente estatísticos estariam resumidos à dimensão quantitativa dos níveis dois e três da tipologia gurvitchiana.

Nesse sentido, pensar a integração das escalas micro e macro traz consequências metodológicas para qualquer pesquisa: 

"Portanto, pode-se formular a seguinte observação metodológica: é tão impossível fazer a microssociologia sem levar em conta a sociologia dos agrupamentos e a tipologia das sociedades globais, quanto fazer a macrossociologia negligenciando a microssociologia" (Gurvitch, 1973, p. 13).

Isso porque:

"Estes três aspectos 'horizontais' da sociologia apóiam-se e mantêm-se reciprocamente, pois estão indissoluvelmente ligados na realidade dos fatos. (...) Estas três escalas não podem ser separadas senão relativa e metodologicamente (...) a fim de servir de pontos de referência convenientes para a pesquisa. Mas elas não podem ser desunidas (do ponto de vista do ser), pois na vida social, elas se interpenetram  e sua relação efetiva é dialética: cada uma das três escalas pressupõe as outras" (Gurvitch, 1973, p. 13). 

Gurvitch conclui que do ponto de vista metodológico é conveniente separar as escalas micro e macrossociológicas, mas que são ontologicamente inseparáveis na realidade.

Contudo, mais adiante, o autor afirma que seria útil para a tarefa de explicar fenômenos sociais, a primazia ontológica da sociedade global e a primazia metodológica dos tipos microssociológicos.

Isto é, compreender os fenômenos como parte do que nomeia de sociedade global, mas executar pesquisa sociológica a partir da escala micro.

Achei interessante o critério estabelecido pelo autor para uma análise integrativa das escalas:

"Se a análise é bem conduzida, encontra-se, pela microssociologia, a macrossociologia e reciprocamente; ou, começando-se pela sociologia dos agrupamentos, chega-se, necessariamente, de um lado, à microssociologia, e, de outro, à tipologia das sociedades globais" (Gurvitch, 1973, p. 14). 

Pode-se dizer que Gurvitch oferta uma solução em simultâneo, ontológica e metodológica para a epistemologia das escalas, a partir da integração dos níveis micro e macrossociológicos para o estudo dos fenômenos sociais.

Raphael Cruz


Referências

BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004.

GURVITCH, Georges. Fenômenos micro e macrossociológicos. In: FERNANDES, Florestan. Comunidade e sociedade: leituras sobre problemas conceituais, metodológicos e de aplicação. São Paulo: Companhia Editora Nacional; Editora da Universidade de São Paulo, 1973.

Observação: texto revisado em 12 de dezembro de 2022.

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