Freud e o estudo de caso na psicanálise e na sociologia


Sigmundo Freud (1856-1939)


Minha relação com o triunvirato Marx, Durkheim e Weber é profissional devido a minha formação como sociólogo.

Já com Freud, minha relação é baseada na curiosidade, por não ser psicanalista, mas leitor iniciante em obras de psicanálise. 

Foi nessa condição, que estava lendo O homem dos lobos: história de uma neurose infantil, um estudo de caso redigido por Freud no final de 1914, mas publicado em 1918. 

O subtítulo do livro já indica do que trata, uma neurose infantil, contudo, não são os meandros da vida psíquica do paciente de Freud o que tratarei neste texto. 

Vou eximir-se disso por falta de conhecimento e, porque me interessa como o próprio Sigmund utilizava o estudo de caso.

Pois, o estudo de caso é um método de pesquisa comum a sociologia e a psicanálise.   

No início do primeiro parágrafo do livro, Freud afirma:

"O caso de doença que relatarei aqui (...) distingui-se por um bom número de particularidades que devem ser destacadas antes da exposição" (Freud, 2016, p. 7).

Na nota de rodapé referente a esta primeira frase, Freud refere-se a este "caso de doença" como uma "história clínica". 

Será apenas ao final do livro, que o autor tratará novamente do "caso" em termos metodológicos.

"É natural que um caso como este possa dar motivo para pôr em discussão todos os problemas e resultados da psicanálise. Seria um trabalho interminável e não justificado. É preciso admitir que não se pode saber tudo a partir de um único caso, tudo decidir através dele, e contentar-se, portanto, em aproveitá-lo naquilo que mostra mais nitidamente" (Freud, 2016, p. 107). 

Há pelo menos, três pontos a destacar nesse trecho.

1) Reconhece o autor que um caso pode dar condições para discutir toda a psicanálise, contudo seria uma tarefa ingrata.

2) Para ele, um estudo de caso tem limites: não é possível saber tudo sobre um fenômeno a partir dele.

3) O correto, a se fazer, diz Freud, é aproveitar o caso naquilo que ele mostra mais nitidamente.

Continuo com o autor:

"Na psicanálise, a tarefa da explicação tem limites estreitos. Cabe explicar as formações sintomáticas notáveis, desvendando a sua gênese; os mecanismos psíquicos e processos instituais a que assim chegamos, esses não cabe explicar, mas sim descrever. Para obter novas generalizações a partir das constatações sobre os dois últimos pontos são necessários muitos casos como este, analisados bem profundamente. Não é fácil tê-los, cada qual exige anos de trabalho. De modo que o progresso nesses domínios se efetua lentamente" (FREUD, 2016, p. 107). 

Cinco pontos podem ser extraídos dessa passagem.

1) Para Freud, a explicação é dirigida as "formações sintomáticas notáveis" para "desvendar sua gênese". (função)

2) Contudo, os "mecanismos psíquicos" e "processos instituais" não são explicados, mas descritos. (metodologia)

3) Para se obter generalizações sobre os mecanismos e processos citados, serão necessários "muitos casos". (quantidade)

4) Estes casos devem ser "analisados bem profundamente". (qualidade)

5) Para se obter esses casos analisados profundamente, é necessário vários anos. (temporalidade)

Pode-se concluir que para Freud, existe um uso determinado do estudo de caso.

Um caso, deve ser estudado profundamente.

E isso demanda tempo.

O caso explica formações sintomáticas notáveis.

E descreve os mecanismos psíquicos e os processos instituais.

Entretanto, para generalizar as constatações presentes no caso sobre os processos e mecanismos, são necessários muitos estudos de caso. 

Nesse sentido, com um único estudo é possível atingir certos objetivos de explicação de sintomas (empiria), mas não de explicação de processos e mecanismos (teoria), apenas suas descrições.

De modo que a explicação da teoria dos mecanismos e processos depende do estudo profundo de casos empíricos acumulados e comparados.

Quando um sociólogo estuda conflitos numa escola, comunidade ou empresa, seu caso descreverá um universo empírico particular. 

Como disse Freud na segunda citação, a maneira de "aproveitar" um caso é naquilo que ele torna mais evidente. 

É possível que determinadas questões se destaquem mais na escola, por exemplo, questões de gênero entre meninos e meninas.

E numa empresa, tenha relevância a hierarquia entre funcionários a partir da divisão e renda do trabalho.

Contudo, para se teorizar sobre gênero e hierarquia é necessário mais de um caso estudado, uma acumulação e comparação entre eles. 

Aqui, o estudo de caso em escola ou empresa na sociologia está para as teorias de gênero ou hierarquia assim como o caso empírico de "o homem dos lobos" produzido por Freud está para a teoria da neurose.

Nesse sentido, o estudo de caso oferece uma maneira de retroalimentar a teoria e a empiria.

Penso que a lógica do uso freudiano do estudo de caso, não difere substancialmente do seu uso em sociologia, no que concerne a relação aludida acima entre aspectos empíricos e teóricos da pesquisa sociológica, apesar dos objetos, conceitos e teorias diferentes mobilizados para a produção de conhecimento na sociologia e na psicanálise.

Raphael Cruz


Referência

FREUD, Sigmund. O homem dos lobos: história de uma neurose infantil. Tradução de Paulo César de Souza. 1ª edição. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2016. 

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