Lovecraft: sociólogo acidental numa cidade surreal

H.P Lovecraft (1890-1937)


É comum que escritores de ficção abordem temas sociológicos tais como poder, riqueza, classe, raça, gênero e geração. 

Também não é raro que arrisquem interpretações "sociológicas", ainda que não possuam treinamento profissional. 

Chamo isso de sociologia espontânea ou sociologia na literatura. 

A acadêmica sociologia da literatura refere-se ao estudo sociológico de uma obra. Busca explicar as condições sociais da produção literária ou compreender seu significado cultural. O sociólogo é o seu operador. É um exercício de análise científica.

Já a sociologia na literatura é uma análise "sociológica" por meio de uma peça literária. São obras ficcionais que inventam teorias espontâneas para explicar as relações sociais em seus mundos inventados. O escritor é o seu operador. É um exercício de imaginação literária.


Ilustração de Frank Utpatel para a 1° edição de Sombra sobre Innsmouth


Sombra sobre Innsmouth é um conto de H.P Lovecraft publicado em 1936.

Trata-se do relato de um jovem que, durante viagem pela Nova Inglaterra, pernoita em Innsmouth, povoado portuário, decadente e misterioso, que nem sequer consta no mapa. 

A narrativa em primeira pessoa sobre o lugar e seus habitantes assemelha-se a retórica da etnografia urbana.

A descrição da geografia, arquitetura, história e demografia de Innsmouth aparenta os antigos estudos de comunidade da primeira metade do século XX, tão comuns na sociologia. 

Abaixo, alguns trechos que exemplificam a sociologia na literatura de Lovecraft:

"Não valeria à pena, disse-me o meu informante, perguntar aos nativos alguma coisa sobre o lugar. O único que falaria era um homem muito idoso, mas de aparência normal, que vivia no asilo na periferia norte da cidade e matava o tempo andando de um lado para outro e fazendo hora no Corpo de Bombeiros" (Lovecraft, [1936] 2020, p. 29). 

"A cidade, como eu podia perceber, era um exemplo significativo e exagerado de decadência comunal, mas, não sendo nenhum sociólogo, eu limitaria minhas observações sérias ao campo da arquitetura" (Idem, p. 32). 

"No último momento, decidi que o melhor a fazer era desacelerar o passo e fazer o cruzamento como antes, com o modo de andar cambaleante de um nativo médio de Innsmouth" (Idem, p. 79-80).

Na primeira citação, o personagem lida com um problema corriqueiro de antropólogos e sociólogos, encontrar seus interlocutores de pesquisa, pessoas que possam lhe informar sobre a vida no lugar.

Na citação seguinte, o personagem de Lovecraft inventa o conceito "sociológico" de decadência comunal. O próprio autor deve ter percebido como sua prosa estava sociológica ao ponto de tentar restringir a observação à arquitetura. 

Na último citação selecionada, o personagem tenta passar desapercebido pelas pessoas ao imitar o que acredita ser o andar do nativo médio de Innsmouth. Não ser notado é uma tática de "camuflagem" que alguns cientistas sociais almejam, ainda que de difícil alcance e nem sempre o melhor a se fazer.

A narrativa revela um jovem impressionado com um lugar fantástico e seus habitantes fantasmagóricos, que se tornou por acidente um sociólogo espontâneo, pois estendeu para além da arquitetura as suas observações sobre aquela sociedade.

Além da perspectiva preconceituosa de Lovecraft sobre migração e raça, conhecida por seus leitores críticos, o conto é um exercício de etnografia surrealista e sociologia espontânea.

Se o literato torna-se sociólogo por acidente, alguns sociólogos almejam a arte. 

No livro Cruz das Almas (1966), um estudo de comunidade, Donald Pierson convencera-se  de que os sociólogos poderiam combinar os papéis do artista e do cientista. Caberia ao leitor, continua Pierson,  julgar se o cientista alcançou ou não o objetivo. 

Em A sociologia como forma de arte (1976), Robert Nisbet comparou os trabalhos de Simmel, Durkheim e Weber aos de Balzac e Dickens. Disse que as primeiras, devido à sensibilidade artística e intuição daqueles sociólogos, pertencem à história da arte tanto quanto a literatura dos escritores pertence à história das ciências sociais. 

Bourdiei em As regras da arte (2002), afirmou que a literatura pode por vezes dizer mais, mesmo sobre o mundo social, que muitos escritos com pretensão científica. 

Em Bourdieu e a litetatura (2017), John Speller observa que a sociologia e a literatura, apesar de diferentes e até opostas, têm muito a aprender uma com a outra. 

A ideia de uma sociologia na literatura não é tão absurda. Se levada à sério, pode encorajar a descoberta de um interessante material sobre a burocracia em O processo (1925), de Fraz Kafka ou um exercício de sociologia política do Estado em 1984 (1949), de George Orwell. 

Para Nisbet (1976), a sociologia é uma ciência, mas também uma arte nutrida pelo mesmo tipo de imaginação encontrada na literatura ou pintura. 

Ao estudar as expressões da sociologia na literatura pode-se enriquecer o ponto de vista sociológico a partir de novos ângulos sobre temas tradicionais das ciências sociais.


Raphael Cruz

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