B. Traven: self em fluxo clandestino
B. Traven (~1882-1969) |
É intelectualmente estimulador construir os textos para a disciplina de Estágio III ministrada pela professora Glória.
Acredito que vivi poucos ou nenhum momento durante a pós-graduação no qual pude comentar sobre um autor de minha preferência e ainda por cima não sendo um autor das ciências sociais.
Escolher uma “obra de arte” e falar sobre ela é, em certa medida, também falar sobre nós mesmos.
Os gostos podem indicar algumas orientações filosóficas, estéticas e ideológicas, no sentido forte dessa última palavra.
Quando o colega Ítalo falou que este seria o mote da primeira aula do mês de maio, pensei no que poderia contribuir para aquele momento.
Algumas alternativas surgiram: eu falaria sobre o Livro Um da Saga do Monstro do Pântano escrita pelo Alan Moore nos anos 80 para a DC Comics, ainda que as histórias em quadrinho não sejam consideradas um tipo de expressão qualificada como arte por algumas pessoas e instituições.
Eu poderia também falar sobre Warriors, um livro de ficção sobre gangues escrito por um assistente social americano que tornou-se escritor de ficção científica, ou do filme baseado em seu livro, Warriors: Os selvagens da noite, ainda que filmes de ação também tenham alguma dificuldade de serem classificados como arte.
No entanto, escolhi falar sobre B. Traven porque venho lendo seus livros nos últimos anos e tentando entender suas histórias e sua biografia.
Disseram que B. Traven era na verdade Erich Mühsam, um judeu-alemão anarquista, poeta e ator, um dos agitadores da Revolução Alemã que fundou a República Soviética da Baviera entre 1918 e 1919.
Contudo, Muhsam foi assassinado pelos nazistas em decorrência de sua origem étnica e orientação política num campo de concentração em 1934, quando tinha 56 anos de idade.
Disseram que B. Traven era Esperanza, escritora comunista e lésbica, a irmão já falecida do presidente mexicano Adolfo Lopez Mateos, ou até mesmo o próprio presidente.
Contudo Adolfo desconfirmou o boato numa conferência de imprensa em 1960, durante uma visita oficial à Buenos Aires, afirmando que quando Traven publicou sua primeira novela sua irmã tinha cinco anos de idade e ele era um ano mais novo do que ela.
Disseram que ele seria um pseudônimo do escritor norte-americano Jack London.
B. Traven seria também Arthur Cravan um suíço, sobrinho de Oscar Wilde e conhecido como boxeador, poeta e ator, percebido como um ancestral pelos artistas dadaístas e surrealistas. Cravan foi visto pela última vez na Costa do México em novembro de 1918.
Disseram que Traven seria o crítico satírico e jornalista Ambrose Bierce, nascido em Ohio, no meio-oeste dos EUA, que desapareceu sem deixar rastros durante uma viagem ao México, sendo a teoria mais popular a que diz que foi fuzilado pelos revolucionários do exército de Pancho Villa em dezembro de 1913.
O certo é que B Traven foi um escritor. Seus 17 livros, entre novelas e contos, publicados entre 1927 e 1975, venderam bem e de tão populares tornaram-se filmes em Hollywood ou séries de TV na América e na Europa entre os anos 1940 e 1980.
Entre eles, O tesouro de Sierra Madre, estrelado por Humphrey Bogart e ambientado no México, ganhou o Oscar de 1949, nas categorias melhor diretor, melhor roteiro adaptado e melhor ator coadjuvante.
Outro fato é que ele não gostava dos holofotes, a maneira de Salinger, o autor de O Apanhador no Campo de Centeio, e tinha interesse em embaralhar qualquer uma das pistas que pudessem levar ao conhecimento de sua vida.
As suas narrativas são ambientadas no México, e os personagens principais são indígenas, trabalhadores do algodão, camponeses, mineiros, sindicalistas, revolucionários e quase todas as pessoas que podem ser classificadas como sendo os oprimidos politicamente, os explorados economicamente, as classes trabalhadoras ou, para usar um termo nem tão novo, os subalternos.
Apesar de não deixar conhecer sua vida, o seu texto é entendido pelos críticos literários como derivando de sua experiência pessoal entre os “de baixo”.
Tomei conhecimento dessa figura enigmática que é B. Traven quando tinha vinte e poucos anos, e lia jornais e boletins anarquistas.
Tive a oportunidade de adquirir alguns de seus livros em sebos, pois estão esgotados desde os anos 1980, com a exceção de Visitante Noturno, que ganhou uma edição em 2008 e foi escolhido por Jorge Luis Borges para sua compilação com a melhor literatura fantástica de todos os tempos.
Suas narrativas são permeadas por temas tratados pelo cientista social, a alteridade, as ruralidades, a migração, o mundo do trabalho, a desigualdade econômica, os choques culturais, os conflitos sociais.
Tendo derivado sua narrativa de sua experiência pessoal, Traven pode ser enquadrado naquela categoria de autores na qual estão o Joseph Conrad de Coração das Trevas e o Guimarães Rosa de Grande Sertão: Veredas, literatos, que à sua maneira, fazem o cientista social aprender sociologia e antropologia por outros meios.
Voltando ao enigmático B. Traven. A versão mais aceita pelos biógrafos e críticos é que Traven foi na verdade Ret Marut, um ator de teatro e anarquista alemão, que deixou a Europa em direção ao México por volta de 1924, que editou um jornal cultural e político anarquista.
Foi um agitador da Revolução Alemã de 1918, da qual nasceu a República Soviética de Munique, logo após a I Guerra Mundial.
Em abril de 1919, é proclamada a República Soviética da Baviera, e Marut é eleito diretor do departamento de imprensa do Comitê Central, integrando o Comitê de Governo.
Em primeiro de maio do mesmo ano, ele é preso depois da invasão e vitória da Guarda Branca.
Os reacionários, o declaram culpado de “alta traição” em 23 de junho, e depois de fugir com sucesso, seu nome vai para a lista dos “mais procurados” da polícia política bávara.
Marut segue para Berlin.
De 1919 ao verão de 1923, ele reside clandestinamente em diferentes lugares da Alemanha e da Áustria.
Em dezembro de 1921, aparece o último dos treze números do jornal que editava.
Em agosto de 1923, Marut chega à Londres, mas em novembro é preso por não cumprir o registro obrigatório de estrangeiros.
Em março de 1924, é liberado e embarca para o México, aportando na costa entre os meses e junho e julho daquele ano.
Em seu diário de 26 de julho, escreve: “o bávaro de Munique está morto”. Em 1925, surge pela primeira vez o nome B. Traven.
É publicada em fascículos, no jornal alemão Avante, sua novela Os colhedores de algodão.
Em 1926, como fotógrafo e com o nome de Torsvan, Traven faz parte da experdição à Chiapas, no Sul do México, organizada pelo arqueólogo Enrique Juan Palacios.
Seu primeiro livro, O Barco da Morte é publicado na Alemanha. Daí em diante inicia-se uma bem sucedida carreira de escritor.
O anarquista B. Traven era o escritor preferido do estadista inglês Winston Churchill e do físico Albert Einstein, que, ao ser perguntado sobre qual livro levaria para uma ilha deserta, respondeu: “qualquer um que tenha sido escrito por B. Traven”.
Traven faleceu em 26 de julho de 1969, na Cidade do México. Rosa Elena Lujan, sua viúva, revelou que ele havia sido Ret Marut, o anarquista bávaro.
A universidade da Califórnia detém o acervo de Traven. A curadora de uma das exposições do acervo, Heidi Hutchinson, disse em entrevista ao site da Vice que o testamento de Traven declara que ele “nasceu em Chicago, Illinois, em 3 de maio de 1890, filho de Burton Torsvan e Dorothy Croves Torsvan, ambos falecidos”.
E arremata que “não ouvi falar de ninguém que acredite que essas informações sejam verdadeiras”.
Essa versão do testamento é próxima à que ele deu as autoridades da Baviera quando foi preso após a derrota da Revolução Alemã.
Nessa versão ele dizia a polícia que nada podia ser provado através de documentos porque um terremoto seguido de incêndio destruiu tudo em 1906.
“Para mim, é mais provável que Traven tenha nascido lá”, disse Lujan, afirmando a versão do testamento.
“Ele conversou comigo sobre coisas da infância em Chicago”. Ele também falou, com desaprovação, sobre sua mãe, “uma bela atriz de sangue irlandês ou inglês”, chamada Helene Ottorent.
Mas as poucas gravações de Traven, entre as quais uma descoberta recentemente em um programa de televisão patrocinado pelo governo mexicano sobre sua vida e obra, mostram que ele falava inglês com um pronunciado sotaque alemão ou escandinavo.
“Eu não descarto um nascimento americano”, disse Guthke, um dos seus biógrafos. “Ele pode ter sido filho de uma atriz alemã que se apresentou nos Estados Unidos e voltou para a Alemanha quando ele era criança”.
Um persistente jornalista escreveu a Traven e perguntou sem rodeios “Quem diabos é você?”, O escritor respondeu: "Se eu soubesse, acho que não seria capaz de continuar escrevendo, ou não teria escrito os livros que escrevi'”.
A sra. Lujan lembrou: “Ele costumava dizer para mim: ‘Eu sou mais livre do que qualquer outra pessoa. Sou livre para escolher os pais que quero, o país que quero, a idade que quero’. Mas a realidade é que ele não sabia exatamente como ou onde nasceu”, disse Lujana.
“Ele nunca teve uma certidão de nascimento”.
Parece que o plano de fuga de Ret Marut funcionou, pois, mesmo estando na lista dos mais procurados nas vésperas da II Guerra Mundial, numa Alemanha que tornava-se nazista odiando judeus, gays, artistas e anarquistas, ele jamais foi pego pelas autoridades.
A clandestinidade foi vivida não só através da migração geográfica e do anonimato jurídico, mas também através de um self clandestino de si mesmo, que após a fuga bem-sucedida da Europa em direção ao México continuou fugindo porque criando identidades através de um fluxo de “selfs”: Marut, Traven, Trosvan.
Talvez o plano de fuga tenha funcionado tão bem que chamou atenção das pessoas para o maior de seus personagens, B. Traven. Marut era autor de livros, mas também havia sido ator de teatro e soube desempenhar papéis até o final da vida “fora dos palcos” ou dentro do maior palco de todos, sua biografia.
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